Do fundo da gaveta, mas terrivelmente atual:
Uma das mais belas crônicas da literatura brasileira foi escrita, claro, pelo capixaba Rubem Braga. “A Partilha” fala de dois irmãos que se separam depois de um desentendimento. O narrador da história é o mais velho, que vai dizendo quais pertences pretende levar de casa.
Ele explica que quer ficar com a rede, pois o outro irmão nem gostava muito de rede, “quem sempre deitava nela era eu”. O retrato da irmã pode ficar com o mais novo, mas o retrato da mãe o mais velho quer levar, porque “você tinha aquele dela de chapéu, e você perdeu”. Linhas e chumbadas, o puçá e a tarrafa, o fogão e as cadeiras, a estante e as prateleiras, os dois vasos de enfeite, o quadro e a gaiola, o alçapão, “tudo é seu”.
Mas o canivete o mais velho faz questão de levar, porque quer guardá-lo como recordação. “Quem me perguntar por que eu gosto tanto desse canivete eu vou dizer: é porque é lembrança do meu irmão”.
Reli a crônica pela enésima vez e quis fazer a minha versão, que saiu mais ou menos assim:
Você pode ficar com a cama de casal, com os móveis da sala e da cozinha, com a televisão. O computador foi você quem comprou, é todo seu. Mas alguns livros eu levo: o Caetés, o Dom Casmurro, o do Tchecov e esse aqui sobre o Japão.
A estante é sua, as cortinas são suas, o ferro de passar é seu. Mas o Aurélio vai comigo porque foi do meu irmão. Até escrevi uma crônica sobre esse dicionário, e lembro que você a leu e disse “suas crônicas estão cada vez melhores, meu amor”.
O ventilador, o criado-mudo, os dois cachorros são seus. A verdade é que você nunca cuidou deles, nunca lhes deu banho ou remédio, mas você vai precisar mais deles do que eu. Agora a enciclopédia é minha, cada volume vai comigo, da Barsa eu não abro mão.
Não faço questão da máquina de lavar, das poltronas, do aparelho de som ou do fogão. Queria levar o vídeocassete porque gosto muito de ver filme, mas foi sua mãe quem lhe deu. Vou levar, porém, uma das redes, porque apesar de não gostar de rede, é melhor do que dormir no chão.
Fique com os discos, com os quadros e com as fotografias. O telefone também fica nesta casa, pois nunca me pertenceu. A escrivaninha é sua, o guarda-roupa também é seu. Vou levar o alicate e o martelo, a pedra de amolar e o facão. No peito não vai mágoa, só este coração que lhe dei muito novinho, mas que agora envelheceu.
E se me perguntarem: “Há vantagens em estar partindo, irmão?”, vou mentir que sim, há muitas vantagens, e então lembrarei o dia em que cansei de apertar parafuso ao pé do Monte Fuji e voltei pra te conhecer e descobrir que a dor maior não está em repartir os cacos da vida – mas em ouvir o ruído dos ferros se fechando aqui neste portão.
Como diria o nosso NINJA : "Dedos mágicos" !! Abraço meu amigo .
ResponderExcluir"... e descobrir que a dor maior não está em repartir os cacos da vida – mas em ouvir o ruído dos ferros se fechando aqui neste portão."
ResponderExcluirDoloroso.
Magnífica reinvenção...
ResponderExcluirCaramba! Deixo aqui a solidariedade de quem passou por isso em Janeiro e hoje tem noções muito claras, cínicas e cruéis sobre 'casamento', todas são clichês, mas quem se importa se é verdade mesmo: 1) tire a letra 's' e acrescente um 'g', 2) é como onibus, quem tá fora quer entrar quem tá dentro quer... SAIR! 3) tem o mesmo propósito do submarino - feito pra boiar mas acaba sempre afundando...
ResponderExcluirSimples assim! Ou você ri sobre ou pira! A pior parte é sempre ver os pequeninos confusos, tristes e inquietos, isso é o mais doloroso que acabar com uma coisa que já tá com prazo de validade vencido. Crianças pequenas tem perguntas que desarmam e fazem até o cara mais durão chorar - por que isso? por que aquilo? por que vc e mamãe não mais...? Perguntas que nem a gente sabe explicar e eles lá perguntando em toda sua inocência... Sério, é de lascar, se o cara não tiver cabeça boa vai pro tarja preta...
Você fez desse limão uma ótima limonada, mais um belo texto, tá inspiradíssimo ultimamente.
Com "três batidas de portão", no currículo, acho que tenho experiência pra dizer que seu texto é primoroso e sensível. Você é jovem amigo Archibaldo, tem muito tempo de escrever coisas lindas. Profetizo aqui que, em algum lugar do futuro, você estará na Academia Acreana de Letras. Um abraço!
ResponderExcluirBicho, que coisa linda!
ResponderExcluirEstava em Floripa e encontrei a nossa querida Vassia e lembrei desse texto do carai que vc escreveu e publicou num jornal daí (como eram bons os jornais naquele tempo de delicadezas)
Sou fã desse texto e do autor...claro!!
Um beijo n'alma!
Sergio Souto
E saber que fui eu que apresentei a Vássia pro Archibaldo, logo que ele retornou do Japão. É por isso que eu entôo esse refrão paradoxal: o casamento é bom, justamente porque não é pra sempre...
ResponderExcluirArchibaldo, perdoe a reincidência neste post, mas o reli hoje e lembrei de uma música do Chico Buarque e Francis Hime, chamada "Trocando em miúdos". Segue:
ResponderExcluir"Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde"
Abraço.